Zico, a alegria da Gávea, completa 70 anos
Ídolo maior do Flamengo, Galinho de Quintino abre o coração
Foto: Tania Rego/Ag. Brasil
Por Sergio du Bocage* - Rio de Janeiro
Arthur Antunes Coimbra, ou simplesmente Zico, o maior ídolo da história do Flamengo, completa 70 anos nesta sexta-feira (3). O que mais pode ser dito sobre esse jogador, que em 1981 foi escolhido como o melhor do mundo pelo Diário 16 (jornal da Espanha) e pela revista Guerin Sportivo (Itália), jogando por um time brasileiro? Feito que repetiu em 1983, na ocasião pela World Soccer (Inglaterra), numa época em que não havia tanta troca de informação entre o futebol do Brasil e o da Europa. Não é à toa que ele está no Hall da Fama da Fifa.
Poderia elencar os muitos campeonatos que o Galinho de Quintino - bairro da zona norte da cidade do Rio - ajudou a conquistar, o total de gols, as lesões sofridas e as vezes em que entrou em campo machucado para não prejudicar a equipe - numa delas, em 1987, na na reta final da Copa União, ele atuou nos quatro últimos jogos no sacrifício e operou o joelho no dia seguinte ao da vitória sobre o Internacional. Outra situação ímpar foi quando jogou pelo Rubro-Negro carioca na final do Brasileirão 1983, mesmo negociado para o futebol italiano. Valeria lembrar de quando Zico foi para a Udinese e brilhou na Itália. Depois, de passagem pelo Japão, virou ídolo, técnico até e comandante da seleção nipônica na Copa do Mundo da Alemanha (2006).
Quando Zico completou 60 anos, tive a honra de ser chamado pelo então diretor do Jornal dos Sports - periódico impresso em páginas cor de rosa, que circulou até 2010 - para contar a história do ídolo rubro-negro, tendo como fio condutor as primeiras páginas do jornal. Foram ao todo 60 capas, escolhidas pelo próprio Zico, desde a estreia dele em 1971 até a despedida em 1990. No dia do lançamento, agradeci a ele. “Agora nossas vidas se cruzaram para sempre”. Quem diria!
Então, por que não falar do convívio pessoal? E lá se vão mais de 40 anos. Em 1982 eu era o repórter do Jornal dos Sports, e substituía os os repórteres setoristas de cada clube quando estavam de folga. A segunda-feira era o dia de cuidar do noticiário do Flamengo, que passei a acompanhar diariamente em 1983.
Em pouco tempo fiz amigos - Mozer, Cantarelli, Júnior, Leandro, Tita, Lico, Andrade, Adílio (tempo bom, não era?), mas com o Zico era diferente. E não por culpa dele, mas por respeito ao cara que era o ídolo daquele time. Vale dizer que, numa época em que não havia celular, nem a prática atual de se fazer fotos a todo instante, o dia em que o fotógrafo Jair Motta me deu uma foto (18 x 24cm), em preto e branco, feita durante uma entrevista com o Zico, na casa dele, guardei como um troféu.
Zico foi para a Itália, voltou para o Flamengo, parou de jogar. E certa vez apareceu na praia de Copacabana, no Mundial de Beach Soccer. Eu o recebi e fomos caminhando para a arena de jogo e, enquanto falava, me deu um abraço. Parei na hora e ele perguntou o que tinha acontecido. “Você deve estar de brincadeira, né?”, perguntei a ele, que até se assustou. “Por quê?”. “Pô Zico, você é meu ídolo, cansei de estar ali na arquibancada gritando seu nome. E você me dá um abraço na frente de todo mundo?”. Confesso que continua sendo um dia inesquecível.
Galinho de Quintino abre o coração
Zico é assim: simples nos atos, um cara sério e que não esconde os sentimentos. Virou amigo mesmo, e volta e meia eu até abuso dessa amizade. Como agora. Quarenta minutos de conversa sobre o que ele quase nunca fala. Ou sobre o que ele tinha vontade de falar.
“Eu, como técnico, não me lembro de terem me perguntado sobre qual o meu esquema de jogo preferido, o 4-4-2. Com ele a equipe fica mais equilibrada, com condições de bloquear melhor. Todo time que eu monto procuro implantar esse sistema, que compacta a equipe”, detalha o craque, agora treinador.
Que falha a nossa como jornalistas! Aliás, Zico lembra com saudades da cobertura da imprensa quando era jogador. “Eu até comprava cinco jornais, cada um falava uma coisa, os jornalistas procuravam uma notícia diferente, o furo de reportagem. Hoje é tudo igual, a internet faz com que as notícias sejam instantâneas e o jornal, no dia seguinte, fica parecendo velho”, reclamou. E foi adiante. “Comigo não tem isso de 'falar em off' [quando o repórter se compromete em não divulgar o que o entrevistado revelou]. Se estou conversando com um jornalista, ele tem liberdade para publicar. E gosto mais das reportagens assinadas, quando o cara assume o que está escrevendo. Esse merece mais o meu respeito”, afirma.
Zico adora falar de futebol. “Se bobear, vejo até futebol de botão na TV”. Mas é quando fala da família, que não para de crescer, que o Galo se derrete. Filho de ‘Seu Antunes e de Dona Matilde’, casado com Sandra - “o grande amor da minha vida desde 1975” - pai de Arthur Júnior, Bruno e Thiago e avô de Felipe, Gabriel, Antônio, Arthur Neto, Alice, Larissa, Davi, Sofia e Tom, o Galinho não reluta em dizer que “ser filho, marido e pai é bom, mas ser avô é muito melhor”.
“A gente chega num momento da vida que sabe o que pode e o que não pode, é mais fácil. Como avô a gente reúne todas as experiências vividas, pode saber até onde vai, o que pode ser bom ou não para o neto, e ajudar o filho na educação deles. E não vem com esse papo de que avô deseduca. A gente educa com os atos, com o exemplo. Damos liberdade para uma coisa ou outra, mas até o limite do certo e do errado. As crianças de hoje são observadoras. Quando elas vêem que o avô não faz determinada coisa, elas sabem que aquilo é o mais certo”, ressalta o ídolo rubro-negro.
Pai de três filhos, a chegada de Alice, primeira menina da família que Zico estruturou com Sandra, foi marcante. “Olha, não tenho preferência por neto, mas confesso que é muito diferente quando o neto chama de 'vô' e a neta de 'vovô’“, derrete-se.
É lógico que futebol entra na conversa. Que gol você gostaria de ter feito na carreira? E a resposta é imediata: "“eu só queria ter feito o gol de empate naquela partida contra a Itália, em 1982. A gente ficou em cima deles o tempo todo, sofri uma marcação homem a homem em toda a partida, quase não tive chances. No final, o Oscar quase marcou de cabeça, teve gente achando que era eu no lance. Se eu pudesse voltar no tempo, e fazer mais um golzinho, seria naquela partida. De bico, de canela, de qualquer jeito”, assegura o craque.
E qual gol você lamenta não ter feito? Outra resposta imediata. “Essa é fácil de responder. O pênalti contra a França, na Copa de 1986. Aquele gol colocaria o Brasil na frente, se bem que ainda tinha jog e a França poderia empatar, mas acabei ficando com o ônus daquela eliminação. Vivo a mesma situação do Barbosa, da Copa de 1950. Aqui no Brasil a gente vive com isso. Dez erram, mas só um vira o boi de piranha. Eu aceito essa injustiça na boa, foi um erro de jogo, igual ao frango do goleiro, à furada do zagueiro. Não foi proposital, foi uma falha do jogo. Convivo muito bem com essa situação, porque sei que não tenho culpa pela eliminação”, ressalta.
Zico marcou 854 gols, 525 reconhecidos pela Fifa, o que o coloca em 14º lugar entre os maiores do mundo. Inclusive, lembra com detalhes de cada um deles. E o que ele considera um dos mais bonitos da carreira - em 11 de maio de 1974, véspera do Dia das Mães, contra o Grêmio, no Maracanã - tem significado ainda maior. “Foi lindo e eu ainda pude homenagear minha mãe. O Geraldo lançou o Vanderlei [Luxemburgo] e ele cruzou na medida. Peguei de voleio, na veia. Quando o goleiro pulou, a bola já estava voltando. Se eu pegasse mal na bola, ela ia parar na arquibancada. Eu brinco com o Luxa até hoje, dizendo que ele só é lembrado como jogador por mim, nessa jogada. Ninguém mais fala dele”, provoca o Galinho com bom-humor.
Quando se trata de gols importantes, a lembrança de Zico é ainda mais imediata.
“Na final contra o Grêmio, no Brasileiro de 1982, a gente estava perdendo de 1 a 0 no Maracanã, e se houvesse empate no jogo da volta, em Porto Alegre, eles seriam campeões. Fiz o gol no finalzinho e depois conseguimos o título no Sul. Mas antes daquele jogo, teve outro contra o Santos, no Morumbi. A gente ganhou no Rio de 2 a 1 e estava perdendo de 1 a 0 quando o Leandro mandou na área. Eu estava de costas e cabeceei virando o corpo, torcendo para o Marola estar no meio do gol. Deu certo, empatamos e seguimos no campeonato. Mas não há dúvida alguma de que, para mim, o gol mais importante da carreira foi o segundo, de falta, em cima do Cobreloa, na final da Libertadores. Valeu um título inédito, Sul-Americano, nos permitiu lutar pelo Mundial. Sem contar a guerra que foi nos dois jogos anteriores. Foi uma campanha inesquecível”, recorda orgulhoso.
Como inesquecíveis, também, são as histórias engraçadas. “Pô, a gente estava fazendo uma preliminar no Maracanã, o jogo começava às 7h15 da noite, a galera só chegava no intervalo, vinha do trabalho. O estádio quase vazio, acho que foi contra o Campo Grande, sei lá. Mas o Luís Paulo fez o gol e saiu com o bocão aberto, gritando. Aí a perereca ( prótese dentária móvel) pulou. A galera na geral gritou na hora: 'olha a perereca'. A gente caiu em cima dele pra festejar, e ele pedia pra gente se afastar, para não quebrar a perereca. Acabou achando. Outra aconteceu comigo, num Flamengo x Vasco. Estava chovendo e numa disputa de bola com o Orlando a minha aliança caiu. Era um clássico, não tinha como eu ficar procurando durante o jogo, ainda mais ali ao lado da pequena área. Quando a partida acabou, eu procurei o pessoal do Maracanã e pedi para procurarem. Lembro que não apagaram os refletores, nem ligaram o sistema de irrigação. Na quarta-feira, no jogo seguinte, me devolveram no vestiário”.
Zico nunca foi de brigar em campo, apesar de ter sofrido algumas jogadas violentas. “O Edinho, um dia, me deu uma cotovelada que arrancou um dente. O Guina me deu um pontapé na barriga, fui reclamar e o [árbitro] Wright me expulsou. Fazer o quê, né?”. Mas foi numa pelada, no interior de Minas Gerais, que o craque do Flamengo perdeu a linha. “Eu fui com o Juventude, de Quintino, participar de uma pelada em Leopoldina, campinho de terra. A gente sempre fazia esses jogos nas férias. No meio do campo do time deles tinha um cara com um braço só, que jogava pra cacete. Driblava todo mundo, tinha habilidade. Estava deitando! Veio pra cima de mim e cheguei junto, dei uma porrada nele, caímos um para cada lado”, conta às gargalhadas. “Ele levantou me xingando, me mandando tomar naquele lugar, mas o mais engraçado é que, mesmo com apenas uma mão, ele fazia o gesto. Primeiro, com a mão aberta, gesticulava para baixo. E depois, com a mão fechada, para cima. Ninguém acredita nessa história, mas é verdade”, assegura sem conter o riso.
A conversa vai chegando ao fim. Zico lembra que, no passado, deixou de fazer muita coisa por causa da fama. “Não podia ir com meus filhos ao teatro infantil, ao parque de diversões. Agora estou tentando fazer isso com os netos”. De arrependimento, apenas um projeto, o filme “Uma aventura do Zico”, de 1999. “Não gostei, só aceitei porque foi um pedido do amigo Luís Carlos Barreto. Não foi bem elaborado, não era aquilo que eu queria. Se houvesse algo que eu pudesse trocar na minha vida, eu certamente não teria feito aquele filme”, lamenta.
E como o Zico gosta de ser chamado?
“Em casa a Sandra me chama de 'filho'. Meus amigos me chamam de Galo, Galinho. Engraçado que, na rua, o cara passa por mim, nunca me viu e bate no ombro: 'e aí, Galo?', na maior intimidade. O Zico parece que ficou mais com o torcedor mesmo. Mas quer saber? Eu adorava o apelido que o Celso Garcia colocou em mim: Alegria da Gávea. Uma pena que não pegou, ficou mais o Galinho de Quintino”.
Entenderam, agora, o motivo do título? E cá entre nós, Alegria da Gávea tem tudo a ver com o Zico.
* Sergio du Bocage é apresentador do programa No Mundo da Bola, da TV Brasil