Imperatriz mostrou o Brasil que nos interessa, diz carnavalesco
Escola carioca leva título após 22 anos
Foto: Frnando Frazõ/Ag. Brasil
Em seu título anterior no Grupo Especial, o carnavalesco Leandro Vieira havia cruzado a Sapucaí com uma Mangueira que empunhou a bandeira brasileira em verde e rosa, com a frase Índios, Negros e Pobres no lugar do Ordem e Progresso. O ano era 2019, um governo de extrema direita estava recém-empossado e o assassinato da vereadora Marielle Franco não havia completado um ano. O rosto da vereadora estampou bandeiras no desfile, e seu nome estava no samba-enredo que se tornou um grito de resistência. Ao levantar a taça na Sapucaí novamente este ano, pela Imperatriz Leopoldinense, Leandro Vieira fez carnaval em um Brasil que empossou um governo progressista e que nomeou Anielle Franco, irmã de Marielle, ministra da Igualdade Racial, para reduzir a exclusão dos índios, negros e pobres.
“O carnaval de 2023 da Imperatriz também é uma marca de seu tempo. É uma marca de orgulho da brasilidade, é uma marca de retomada de um Brasil que nos interessa visualmente, conceitualmente, um Brasil regional, e do quanto o regionalismo e a pluralidade artística são fundamentais nesse aspecto de brasilidade”, disse Leandro Vieira.
Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, por telefone, durante suas férias, o carnavalesco, que soma cinco títulos em oito anos, disse que sentido tentou dar ao seu carnaval nesses dois momentos, e como busca em seu estilo de trabalho aproveitar o que cada escola de samba tem como essência.
Carioca do Jardim América, na zona norte do Rio de Janeiro, Leandro Vieira tem 39 anos de idade e é formado em Belas Artes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu primeiro desfile como carnavalesco foi com a Caprichosos de Pilares, em 2015. No ano seguinte, ele estreou com título no grupo especial, com a Mangueira, e um enredo sobre a cantora Maria Bethânia.
O carnavalesco continuou à frente da Verde e Rosa, conquistando também o título de 2019, com o carnaval Histórias de ninar gente grande. Em 2020, veio seu primeiro título com a Imperatriz, na Série A, garantindo a volta da escola da Leopoldina ao Grupo Especial.
No carnaval do ano passado, fez seu último desfile com a Mangueira, quando terminou em sétimo lugar e ficou de fora do Desfile das Campeãs pela primeira vez. Apesar disso, na Série Ouro, antiga Série A, veio outro título, garantindo a volta da Império Serrano para o Grupo Especial de 2023, de onde foi novamente rebaixada após o último desfile.
Neste ano, o carnaval da Imperatriz Leopoldinense contou uma criativa versão de como seria a vida após a morte de Lampião, recusado pelo inferno e pelo céu. O enredo se conecta com a forte presença da cultura nordestina nos complexos de favelas da região da Leopoldina, incluindo os complexos do Alemão e da Penha, e a Imperatriz fez um desfile quente e cheio de autoestima.
Quais características definem o seu trabalho e por que você acha que ele tem sido tão bem-sucedido?
Eu acho que me interessar pela cultura brasileira, e me debruçar sobre ela na produção daquilo que eu faço, faz com que o meu trabalho encontre uma receptividade que tem a ver com a aceitação da brasilidade. A comunicação com o público se dá de uma maneira muito orgânica, porque eu acredito que a simplicidade pode conquistar grandes coisas. Meu carnaval comunica de maneira simples, e minhas escolhas estéticas e narrativas são baseadas na simplicidade. Isso comunica. Outro aspecto é que eu não tenho interesse em reproduzir esse estereótipo do luxo, do exagero, do deslumbrante como algo pautado pela riqueza. Por eu não ter esse interesse, acabo produzindo um visual de fantasias e alegorias que eu acho que são alternativas. E as pessoas acham ou creem que são um certo ineditismo visual. Uma terceira coisa, e talvez a mais importante, é a minha obsessão por apresentar enredos que respeitem os interesses comunitários, entendendo interesses comunitários como as vocações individuais das comunidades para quem eu ofereço meu trabalho. Embora eu tente manter as minhas predileções artísticas, quando eu fui carnavalesco da Mangueira, eu fui um, quando eu fui carnavalesco do Império Serrano, eu fui outro, e quando sou carnavalesco da Imperatriz, eu estou sendo um terceiro. É sob medida.
Você participou da volta da Imperatriz ao Grupo Especial e agora foi campeão desse grupo com a escola. O segundo título foi, de alguma forma, consequência do primeiro? Como vê a relação entre esses dois carnavais?
Eu acho que com o título de volta ao grupo especial e o título que encerra o jejum de 22 anos, eu acho que eu começo a construir alguma coisa bonita com a Imperatriz, alguma coisa que num sentido inicial é vitoriosa. Eu enxergo isso como algo bonito, eu acho que isso é um começo de história feliz. Eu acho que são dois títulos de retomada e são dois títulos dão um novo fôlego à escola, são títulos que viram páginas e acho que tudo que vira página e dá fôlego é bem recebido de alguma forma.
E o enredo do ano que vem já está claro na sua mente? Como é esse processo?
O enredo do ano que vem está começando a ser iluminado pelas minhas ideias. Não tem soberba nisso, mas é inevitável que a Imperatriz, que é a campeã do carnaval de 2023, crie expectativas para o carnaval em 2024. Eu adoraria que não criassem expectativa nenhuma para a Imperatriz, mas é quase que inevitável, né? A campeã do carnaval anterior sempre vai gerar uma expectativa. E é evidente que o profissional responsável pela construção da narrativa e do visual seja cobrado. Então, eu tenho que pensar alguma coisa que tenha a capacidade de mostrar que a Imperatriz continua trabalhando, que o campeonato fez com que a Imperatriz trabalhasse mais, e não que tenha sentado em cima do título e se acomodado. Então, eu preciso apresentar um evento que esteja à altura do que a comunidade espera para 2024. E ninguém espera que a Imperatriz 2024 seja inferior à de 2023. É muito difícil você superar essas coisas, mas o meu trabalho é esse. Então, eu tenho que continuar lapidando as ideias, aumentando a qualidade da pesquisa e trabalhando com a expectativa de produzir algo que seja à altura de uma escola que atualmente é a campeã do carnaval.
E existe uma expectativa sobre o seu trabalho também, né? Você se cobra muito para superar o que você já criou?
Eu não me cobro nesse sentido. Eu entendo que, como artista, tendo um trabalho público, a cobrança pública é natural, mas enquanto homem e entendedor dos meus limites e entendedor da construção do que é um processo artístico, eu não posso entrar nessa cobrança externa. Eu tenho que ter a cobrança da pessoa que crê que tem que fazer um bom trabalho, que tem que desenvolver uma pesquisa, mas nunca com a ideia disso de me superar. O meu processo é muito mais um processo de construção, artística e criativa, em que um carnaval convida o outro a surgir. As pessoas têm a tendência a enxergar essa escalada como uma escada, eu enxergo isso muito mais com uma rampa, sabe? Eu não tenho a sensação de que eu tenho que subir um degrau. As pessoas geralmente fazem um comparativo como se você estivesse em um degrau, e, no carnaval seguinte, você tivesse que subir outro degrau. Eu, não. Eu já enxergo como uma rampa, em que, enquanto anda para frente, você já tá subindo, entende?
Você foi campeão com um enredo sobre resistência na Mangueira em 2019, num momento político muito diferente do que o país está vivendo agora. Como foi fazer carnaval naquele momento e como foi fazer agora?
Eu acho que o carnaval da Mangueira de 2019 fica como um carnaval que serve ao seu tempo, um carnaval que funciona como um avanço contra algo que na esfera política retrocedeu. Ele fica como um farol democrático, um farol de resistência em um tempo em que sofríamos ataques de um pensamento antidemocrático, de uma certa valorização do autoritarismo, um certo desprezo pelas questões indígenas e quilombolas. Ele tem o interesse de sinalizar que é preciso seguir na resistência. E o carnaval de 2023 da Imperatriz também é uma marca de seu tempo. É uma marca de orgulho da brasilidade, é uma marca de retomada de um Brasil que nos interessa visualmente, conceitualmente, um Brasil regional, e do quanto o regionalismo e a pluralidade artística são fundamentais nesse aspecto de brasilidade. Não se constrói brasilidade sem passar pela pluralidade produzida pelo povo brasileiro. A arte é uma marca de seu tempo, e tento fazer dos carnavais um reflexo do tempo em que eu vivo.
Nesse momento em que o país está tão dividido politicamente, você vê o carnaval como um momento de encontro ou de disputa de visões de mundo?
Eu não gosto muito dessa coisa taxativa de "o carnaval é". Quando você diz que "o carnaval é", você acaba dando um recorte que é um recorte tolo, porque não dá para você recortar o carnaval como algo pré-definido. Acho que o carnaval também é. Também é um momento de encontro, de celebração, de disputa, também é um momento de luta, também é um momento de festa. Acho que o carnaval também é uma série de coisas. Ele não é exclusivamente isso ou aquilo.
E você também se diverte muito no carnaval de rua, né?
Aprendi a gostar de carnaval, e da atividade carnavalesca, aprendi a ter contato com o lúdico e com a fantasia em função do carnaval que acontece na rua. Esse carnaval livre que não está sob o julgamento do certo e do errado, não está sob o julgamento do que é pontuado ou despontuado.
Como você vê a contribuição de cada tipo de carnaval, de rua, da Sapucaí, para o sentido do que é o carnaval do Rio de Janeiro?
Eu acho que são práticas que se complementam e em alguns aspectos são antagônicas, mas a rua e a avenida dão o que é a totalidade da experiência carnavalesca. Não há como limitar o carnaval com a expressão de que o carnaval é. O carnaval é também. Essa ideia da não domesticação do corpo se torna muito evidente na rua. Essa ideia da prática carnavalesca e da fantasia, da construção da identidade da rua, complementa essa ideia de escola que desfila na avenida. É preciso entender também as múltiplas maneiras e aspectos musicais no carnaval da cidade. A avenida é marcada pelo carnaval do samba, e a rua também é marcada pelo carnaval da marcha. E existe hoje, de maneira mais moderna, a carnavalização de outros ritmos, que são mola propulsora para a alegria. É um contato múltiplo com a cidade que entra em festa, essa transformação da rua em terreiro, esse contato múltiplo em que a cidade não fica domesticada.
A Imperatriz é de uma região da cidade em que as comunidades sofrem muito com a violência urbana e a exclusão social. Como esse cotidiano da comunidade afeta o carnaval da Imperatriz e como o carnaval que a Imperatriz afeta o cotidiano e a vida dessas pessoas?
A Imperatriz é uma escola intimamente ligada à zona da Leopoldina, a esses bairros da periferia, que são os bairros do subúrbio carioca. Dentro da territorialidade da Imperatriz Leopoldinense está o maior complexo de favelas da cidade do Rio de Janeiro, que são os complexos do Alemão, da Penha e aquela região toda. E a Imperatriz tem produzido nos últimos anos um processo de aproximação com esses territórios, e isso se dá através de projetos sociais, engajamento da escola com a comunidade na produção de atividades artísticas. Isso, de imediato, possibilitou que tivéssemos um desfile muito quente, onde a presença da comunidade foi fundamental e mola propulsora para a construção desse campeonato que há 22 anos não acontecia. Esse entendimento da Imperatriz como representante do território, e o entendimento do território que enxerga a Imperatriz como uma bandeira, isso passa pela visita do presidente Lula ao complexo do Alemão [em 2022] com a presença da Imperatriz, passa pelos projetos sociais, e representa o desejo da Imperatriz de representar a zona da Leopoldina e os complexos de favelas que se aproximam dela.