Ferramenta baseada em IA desenvolvida pela USP ‘mede’ agressividade de câncer para novas terapias
Modelo de aprendizado de máquina se mostrou capaz de prever por meio de proteínas específicas a agressividade de alguns tipos de tumor

Foto: Govesp
Com o aumento dos casos de câncer no mundo, a doença tem se mostrado cada vez mais complexa, desafiando a ciência na busca por avanços no diagnóstico e tratamento. Nesse cenário, a inteligência artificial (IA) vem sendo uma aliada em modelos de predição e detecção de casos. Uma ferramenta desenvolvida por pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e da Polônia pode contribuir nesse processo.
O modelo de aprendizado de máquina se mostrou capaz de prever por meio de proteínas específicas a agressividade de alguns tipos de tumor, gerando um índice para o grau de stemness que varia de baixo (zero) a alto (um). Conforme aumenta esse índice, o câncer tende a ser mais agressivo, resistente a medicamentos e propenso a recidivas.
O grau stemness se refere a quanto as células tumorais se assemelham a células-tronco pluripotentes, aquelas com capacidade de se transformar em quase todos os tipos de célula do organismo humano. Quanto mais a doença avança, menos as células malignas se parecem com o tecido do qual se originaram, se autorrenovando e com fenótipo indiferenciado.
Para desenvolver a ferramenta, os cientistas utilizaram conjuntos de dados do Consórcio de Análise Proteômica Clínica de Tumores (CPTAC, na sigla em inglês) referentes a 11 tipos de câncer e desenvolveram o índice de stemness baseado na expressão proteica (PROTsi). Foram analisadas mais de 1.300 amostras de casos de mama, ovário, pulmão – carcinoma de células escamosas e adenocarcinoma –, rim, útero, cérebro (pediátrico e adulto), cabeça e pescoço, cólon e pâncreas.
Por meio da integração do PROTsi com dados proteômicos de 207 células-tronco pluripotentes, o grupo identificou proteínas que impulsionam a agressividade de alguns tipos desses tumores. Essas moléculas podem ser possíveis alvos para novas terapias gerais ou específicas. Com isso, a ferramenta também contribui para a personalização da terapia anticâncer, além do avanço do desenvolvimento clínico de tratamentos.
Os achados do estudo, incluindo a validação dos resultados, foram publicados na revista científica Cell Genomics.
“Muitas dessas proteínas já são alvos de medicamentos disponíveis no mercado para pacientes de câncer e outras doenças. Podem ser testadas em trabalhos futuros a partir dessa identificação. Chegamos a elas ao fazer a associação entre o fenótipo de stemness e a agressividade tumoral”, explica à Agência FAPESP a professora Tathiane Malta, do Laboratório de Multiômica e Oncologia Molecular da FMRP-USP.
Autora correspondente do artigo, juntamente com o professor Maciej Wiznerowicz, da Poznan University of Medical Sciences (Polônia), Malta tem apoio da FAPESP por meio do programa Apoio a Jovens Pesquisadores (projetos 19/14928-1 e 18/00583-0).
Pelo trabalho desenvolvido ao longo dos anos, a professora foi uma das vencedoras, em 2022, de um prêmio que visa promover e reconhecer a participação feminina na ciência.
Em 2018, Malta foi a primeira autora de um artigo divulgado na Cell, resultado de sua pesquisa de pós-doutorado, em que o grupo desenvolveu um índice stemness capaz de medir de forma objetiva o grau de similaridade de amostras tumorais com células-tronco pluripotentes.
“À época desenvolvemos o algoritmo baseado em aprendizado de máquina usando o banco público de tumores mantido pelo The Cancer Genome Atlas (TCGA), nos Estados Unidos. Nos baseamos em dados de expressão gênica, quantificando RNA, e de epigenômica, com metilação no DNA. Agora trabalhamos com o banco do CPTAC, baseado em proteômica, e fizemos um update com as análises de proteína, uma molécula funcional que se enquadra em possibilidades de tratamento e aplicação clínica”, completa Malta.
Nos resultados obtidos agora, o PROTsi correlacionou-se positivamente com escores de stemness baseados em transcriptomas previamente publicados, incluindo o modelo de 2018. Foi mais eficaz, por exemplo, na distinção entre amostras tumorais e não tumorais.
Para Renan Santos Simões, orientando de Malta e que divide a primeira autoria do artigo com Iga Kołodziejczak-Guglas, do International Institute for Molecular Oncology (Poznań), o avanço obtido na caracterização do stemness, considerando os níveis de proteína e suas modificações, abre caminho para uma compreensão mais profunda da progressão tumoral e dos mecanismos de resistência às terapias atuais.
“A ciência avança aos poucos, de forma cuidadosa e construída em muitas mãos. É gratificante perceber que estamos contribuindo com esse processo. É isso que nos motiva: saber que o que fazemos hoje pode significar uma diferença real para os pacientes, aprimorando os tratamentos e a qualidade de vida”, afirma Simões, bolsista da Fapesp. A pesquisa contou ainda com a participação do brasileiro Emerson de Souza Santos, também aluno de Malta.
Quadro
No último Dia Mundial do Câncer, lembrado em 4 de fevereiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que 40 pessoas por minuto recebem diagnóstico da doença no mundo, tendo de se submeter a tratamentos oncológicos.
Uma das principais causas de morte, os tumores têm afetado mais a população jovem. Estudo publicado em 2023 na BMJ Oncology pontou que a incidência de câncer de início precoce em adultos com menos de 50 anos cresceu 79% entre 1990 e 2019, além de aumento de 28% dos óbitos. Foram analisados 29 tipos de câncer em 204 países.
No Brasil, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) estima que haja 704 mil novos registros por ano no triênio 2023-2025. De acordo com a publicação Estimativa 2023 – Incidência de Câncer no Brasil, os tumores malignos mais comuns são o de pele não melanoma (31% do total de casos), seguido de mama feminina (10,5%), próstata (10%), cólon e reto (6,5%), pulmão (4,6%) e estômago (3%).
Resultados
No processo de validação, o PROTsi apresentou desempenho consistente em vários conjuntos de dados, distinguindo claramente células-tronco das diferenciadas, com diferentes tumores se posicionando em níveis intermediários. No desfecho clínico, o PROTsi foi preditivo em casos de câncer de útero e cabeça e pescoço, por exemplo.
Além disso, a ferramenta conseguiu diferenciar melhor os tumores de maior grau em amostras de adenocarcinoma, útero, pâncreas e câncer de cérebro pediátrico. “Buscamos montar um modelo que pode ser aplicado para qualquer câncer, mas vimos que funciona melhor para alguns do que para outros. Estamos deixando uma fonte de dados à disposição para trabalhos futuros”, diz Malta.
Segundo a professora, o grupo da USP continua testando outros modelos computacionais para aprimorar as previsões.